O choque de opiniões não pode ser interditado pelos poderosos de ocasião que se arrogam autoridades aptas a decidirem o verdadeiro e o falso, o certo e o errado, no terreno incerto e pantanoso da política
9 minutos de leitura20.09.2025 17:17É difícil ler Immanuel Kant, mas o esforço é recompensado quando as chispas da verdade que ele tangencia fazem cair escamas dos nossos olhos embotados e preguiçosos.
Observo determinados acontecimentos e comportamentos da sociedade hodierna e penso quão necessárias ainda são as suas profundas reflexões, principalmente do âmbito da ética e da moral.
É pitoresco, porém, como sói acontecer no Brasil, que uma das frases mais belas e fortes do ilustre cidadão de Königsberg tenha sido utilizada, no início do presente século, pelo nada kantiano político Antônio Carlos Magalhães que, após envolver-se em vários escândalos de clientelismo, nepotismo e uso indevido de recurso publico, encerrou o seu discurso de renúncia ao cargo de senador com a mesma frase com que Kant encerrara a sua Crítica da razão prática:
“Duas coisas enchem o ânimo de admiração e respeito sempre novos e crescentes, quanto mais frequente e prolongadamente a reflexão se ocupa delas: o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim”, escreveu Kant, em 1788.
“Há somente duas coisas que me embutem respeito: o céu estrelado sobre mim e a consciência moral dentro de mim“, perorou ACM, no plenário do Senado brasileiro, em 2001.
Contradições pragmáticas como essa – quando um político marcado por controvérsias éticas graves usa como arma retórica o discurso da mais rigorosa ética – acontecem no Brasil diariamente. Em vez de razão pura prática, nossos políticos fazem uso da pura hipocrisia.
Deixemos, porém, momentaneamente de lado as coisas como elas são para adentrarmos um pouco o horizonte da ética kantiana, ou seja, de como as coisas devem ser.
A razão para Kant é una, mas ela tem dois tipos de uso, bifurcando-se em razão teórica (a razão que produz ciência) e razão prática (a razão empregada na praxis). A praxis humana é o domínio do agir racional, orientado por determinadas regras que são normas, que incorporam valores e que determinam não aquilo que é, mas aquilo que deve ser.
Como seres humanos, temos a capacidade de acolher como princípio de determinação do nosso agir uma determinação sensível ou uma regra dada pela razão. Para que a nossa ação seja livre é preciso que a regra pela qual determinamos o nosso querer seja uma regra racional.
A necessidade da ação que decorre da representação dessa lei racional é o que Kant chama de dever. Essa necessidade implica universalidade. A noção de dever moral implica uma regra universal e necessária.
A lei moral é imperativo categórico: “age de modo tal que a máxima da tua vontade possa valer sempre, ao mesmo tempo, como princípio de uma legislação universal.”
Outra forma de postular o imperativo categórico é a seguinte: “Age de modo a considerar a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre também como fim (objetivo), e não como simples meio.”
Muitas críticas já foram feitas ao formalismo e ao racionalismo excessivo da ética kantiana. Eu mesma, na juventude, fui fortemente impactada pelas observações de Schopenhauer, que reconhece em Kant o mérito de ter afastado a moral da busca de recompensas externas (prazer, felicidade, utilidade), mas rejeita seu abstracionismo formal.
A moralidade, segundo Schopenhauer, não encontra seu fundamento na razão, mas na compaixão (Mitleid), ato imediato nascido de uma identificação direta com o sofrimento do outro, capaz de romper a ilusão da individuação que nos retém no egoísmo.
A fenomenologia, por sua vez, encontra na empatia (Einfühlung) uma experiência originária pela qual o eu tem acesso ao outro como outro sujeito de consciência. A empatia possibilita o reconhecimento de outros como portadores de dignidade e liberdade; é o modo pelo qual o sujeito reconhece outro sujeito como centro de vivência, não como objeto.
Pois bem, efusivas manifestações de júbilo por ocasião do assassinato de ativista político do campo considerado adversário mostra um retrocesso ético, um processo de estupidificação, bestialização e tribalização da sociedade.
Para tais pessoas, que se deleitam com o ocorrido, não há razão universal, compaixão ou empatia que as façam enxergar o valor supremo da vida humana no opositor político.
Isso não deveria surpreender porque é exatamente o que acontece quando a política se sobrepõe à ética e quando, no vazio de sentido a preencher, a ideologia faz as vezes da religião.
Se, para Kant (assim como para qualquer pensador razoável e decente), ética e política são diferentes mas inseparáveis, ou seja, não podem estar em contradição, há toda uma corrente de pensadores políticos, de líderes políticos e de massa fanatizada que divorciam as duas instâncias, subordinando a moral à práxis política.
O indivíduo cooptado a esse ponto por uma ideologia não é livre, não é um sujeito autônomo, mas alguém que optou por se manter na “menoridade”, que abdicou da razão.
Em 1783 o jornal germânico Berlinische Monatschrift perguntava: Was ist Aufklärung? (O que é o esclarecimento?). Em 1784, Immanuel Kant respondia:
“Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem”.
No referido ensaio – um dos poucos escritos de Kant de fácil compreensão – a preguiça e a covardia são elencadas como causas pelas quais uma tão grande parcela dos homens deixa que outros se constituam em seus tutores. “É tão cômodo ser menor!”, exclama Kant.
Quando vemos, em pleno século XXI, a enorme quantidade de pessoas que se deixam doutrinar, ludibriar e até perverter pelas narrativas mais torpes e insensatas; quando observamos o imenso contingente de indivíduos que tomam políticos ou personalidades poderosas como tutores/protetores, endeusando-os como salvadores ora da democracia, ora da moral e dos bons costumes, ora de um inimigo externo, percebemos a atualidade do referido ensaio.
“Um público só muito lentamente pode chegar ao esclarecimento”, alerta Kant. Para esse esclarecimento, porém, faz-se mister a liberdade, mais especificamente a liberdade “de fazer um uso público de sua razão em todas as questões”. Por uso público, ele entende “aquele que qualquer homem, enquanto sábio, faz dela diante do grande público do mundo letrado.”
Nos dias de hoje, estamos carentes tanto de “sábios” quanto de “ grande público do mundo letrado”. Frente tal carência, faço uma pequena adaptação ao texto de Kant e advogo também pela expressão pública da limitada razão dos idiotas e dos medíocres.
Que falem todos! O choque de opiniões não pode ser interditado pelos poderosos de ocasião que se arrogam autoridades aptas a decidirem o verdadeiro e o falso, o certo e o errado, no terreno incerto e pantanoso da política.
Após as polêmicas manifestações sobre o assassinato do ativista conservador Charles Kirk, algumas vozes públicas foram execradas e sofreram consequências, como retaliações na vida profissional.
Os progressistas que até então berravam contra a liberdade de expressão dos conservadores, clamam agora pela liberdade de expressão dos progressistas; os conservadores que berravam pela própria liberdade de expressão, clamam agora contra a liberdade de expressão dos seus adversários. Pura hipocrisia. Mas segue o jogo.
O que não pode fazer parte do jogo é a eliminação do adversário com um tiro na carótida quando ele estiver falando.
É preciso ter em mente a distinção entre palavra e ato. O Estado deve criminalizar atos de violência não palavras de violência. A repetição incessante de que determinados discursos são violências pode levar a atos absurdos como o do assassino de Kirk, que o matou porque estava “farto do ódio” dele.
Aparentemente a direita populista está usando o caso Kirk para avançar contra a liberdade de expressão. Mas isso só foi possível porque a esquerda identitária, com suas extravagâncias autoritárias tentou impor uma hegemonia discursiva por meio da criminalização do pensamento dissidente.
A ideia que estava se normalizando, de que só a visão de mundo progressista é válida e que tudo o mais é “discurso de ódio” e deve ser contido, justificou não apenas a criminalização do discurso, mas levou também ao odioso discurso de justificação do crime que silenciou uma voz dissidente aniquilando uma existência.
Tudo isso já foi longe demais. A politização excessiva embotou genuínos sentimentos morais e está nos arrastando para a selvageria e para a justificação da delinquência. É preciso voltar ao básico.
“Não matarás!”, diz a Lei eterna. “Não falarás”, diz a nova lei que os ímpios querem impor. Que cada um faça uso do próprio entendimento e decida à qual lei quer obedecer.
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