O novo antissemitismo, resenha do texto de Noah Feldman
Catarina Rochamonte (O Antagonismo)
A revista americana Time publicou, em 27 de fevereiro, um importante ensaio intitulado O novo antissemitismo, assinada por Noah Feldman, professor da Harvard Law School e o autor do livro To Be a Jew Today: A New Guide to God, Israel, and the Jewish People (Ser Judeu Hoje: Um Novo Guia para Deus, Israel e o Povo Judeu).
O alarmante
aumento de casos de antissemitismo em todo o mundo tem dado ensejo a inflamados
debates e renovadas reflexões. Um dos pontos para os quais as análises atuais
têm chamado mais atenção é a emergência de novas formas de antissemitismo. Já
abordamos essa questão em artigos anteriores e, mais detalhadamente, no artigo
intitulado “islamo-esquerdismo: a nova face do ódio ao judeu.”
No referido
artigo, citamos a constatação do filósofo francês Luc Ferry de que o
antissemitismo católico, baseado na acusação de deicídio contra os judeus e o
antissemitismo nazi, baseado na teoria dos judeus como raça inferior estava em
vias de extinção, mas que, pelo contrário, o antissemitismo islâmico da
Irmandade Muçulmana que, na década de 1930, reforçou o antissemitismo nazista,
encontra hoje ressonância nas ideologias contemporâneas de esquerda,
especialmente o chamado wokismo, que reduz tudo ao simplismo da lógica
opressor-oprimido e em cuja perspectiva ideológica “o sionismo é o mais recente
avatar do colonialismo ocidental e racista apoiado pelo neoliberalismo
americano.”
A análise de Noah Feldman, publicada na Times, corrobora essa abordagem, reconhecendo também que o antissemitismo hoje não é impulsionado primariamente nem pela religião cristã nem pela teoria nazista da raça superior. O antissemitismo, pra ele, não é “um conjunto imutável de ideias derivadas de crenças antigas”, mas “uma força criativa, mutável e multiforme” que “reflete as preocupações ideológicas do momento” e que “conseguiu reinventar-se múltiplas vezes ao longo da história, mantendo sempre alguns dos antigos tropos, ao mesmo tempo que criava novos adaptados às circunstâncias atuais”.
O ponto
fundamental do discurso antissemita é que, nele, “os judeus são sempre
levados a exemplificar o que um determinado grupo de pessoas considera ser a
pior característica da ordem social em que vivem”. Assim sendo, “o seu
conteúdo pode ser alterado e mudado à medida que as preocupações e os
julgamentos morais de uma sociedade mudam.”
O antissemitismo
do século XIX já marca uma reinvenção do antissemitismo clássico. O aspecto do
preconceito religioso vai cedendo lugar a teorias da conspiração como a de que
os judeus controlavam secretamente o mundo. No século XX, sob ângulos
diferentes, tanto o nazismo como o marxismo identificaram os judeus como um
inimigo que mereciam ser expurgados. Hoje, constataFeldman, “a pseudociência
racial é uma vergonha e a luta entre o capitalismo e o comunismo tornou-se
ultrapassada. O populismo antielitista ainda pode basear-se em velhas mentiras
sobre o poder judaico, e essas ainda repercutem em certos públicos,
especialmente na extrema direita. Mas é mais provável que a corrente mais
perniciosamente criativa no pensamento antissemita contemporâneo venha da
esquerda”.
Assim como Luc
Ferry, no artigo intitulado “Judeofobia: compreendendo a nova situação”,
tenta nos alertar da urgência de se reconhecer as diferentes faces do ódio ao
judeu, sob risco de não nos darmos conta do que realmente nos ameaça hoje,
também o artigo de Noah Feldman faz soar o alarme de que “o antissemitismo
está se transformando novamente, neste momento, diante dos nossos olhos”.
A nova situação,
alertada por Ferry, é que, aos olhos do wokismo e do islamo-esquerdismo, o
muçulmano substituiu o proletário no papel dos oprimidos e a retórica do
“Ocidente colonizador” como o lado opressor uniu ao wokismo e ao islamismo o
tal “Sul global”, fazendo com que aproximadamente dois terços do planeta esteja
sendo movida pelo ódio galvanizado por essa narrativa ideológica.
Noah Feldman, por sua vez, acrescenta a esse diagnóstico a análise de que “o cerne do novo antissemitismo reside na ideia de que os judeus não são um povo historicamente oprimido que procura a autopreservação, mas sim opressores: imperialistas, colonialistas e até supremacistas brancos. Esta visão preserva vestígios do tropo de que os judeus exercem um vasto poder. Atualiza criativamente essa narrativa às circunstâncias contemporâneas e às preocupações culturais atuais com a natureza do poder e da injustiça”.
Embora as preocupações com o abuso do poder e com as injustiças sejam perfeitamente legítimas, explica Feldman, é importante distinguir as críticas idôneas das formas antissemitas como elas podem ser utilizadas. Essa cautela é importante porque “Israel, o primeiro Estado judeu a existir em dois milênios, desempenha um papel central na narrativa do novo antissemitismo.”
“Não é inerentemente
antissemita criticar Israel. O seu poder, como qualquer poder nacional, pode
estar sujeito a críticas legítimas e justas”, pondera Feldman. Porém, na
crítica a Israel, categorias como o imperialismo, supremacia branca ecolonialismotêm
sido manipuladas sem nenhum rigor para fazer julgamentos morais e tentar
deslegitimar a sua existência.
Segundo o
professor, essas categorias não se enquadram muito bem na especificidade de
Israel.
O conceito de
imperialismo, por exemplo, foi desenvolvido para descrever potências europeias
que conquistaram, controlaram e exploraram vastos territórios no Sul e no Leste
globais, enquanto “Israel é uma potência regional do Oriente Médio com uma
presença minúscula, e não um império global ou continental concebido para
extrair recursos e mão-de-obra” e foi criado para abrigar judeus deslocados
depois de 6 milhões terem sido mortos no Holocausto.
O paradigma da
supremacia branca tampouco corresponde facilmente aos judeus. Conforme explica
o professor da Harvard Law School, aproximadamente metade dos judeus de Israel
“não são etnicamente europeus em nenhum sentido, muito menos racialmente
brancos, um número significativo de judeus israelenses é de origem etíope e a
pequena comunidade de israelenses hebreus negros em Israel é etnicamente
afro-americana”.
Sobre a
consideração dos primeiros colonos sionistas como colonialistas, pode-se
apontar que boa parte deles eram pessoas apátridas e oprimidas que procuravam
refúgio na antiga pátria, onde alguns judeus sempre viveram.
A conclusão de Noah
Feldman é que, “a narrativa de Israel como um opressor colonizador igual ou
pior do que os EUA, o Canadá e a Austrália é fundamentalmente enganadora.
Aqueles que a promovem correm o risco de perpetuar o antissemitismo ao
condenarem o Estado Judeu [...] a única pátria de um povo historicamente
oprimido que não tem outro lugar a que chamar de seu”.
O uso arbitrário
das referidas categorias faz parte, portanto, da estratégica retórica do novo
antissemitismo, que não para, porém, por aí: “para enfatizar a narrativa dos
judeus como opressores, o novo antissemitismo deve também, de alguma forma,
contornar não apenas dois milênios de opressão judaica, mas também o
Holocausto, o maior assassinato organizado e institucionalizado de qualquer
grupo étnico na história da humanidade”.
Nesse aspecto os
dois extremos ideológicos se tocam: “à direita, os antissemitas ou negam que
o Holocausto tenha acontecido ou afirmam que o seu alcance foi exagerado. À
esquerda, uma linha é que os judeus estão usando o Holocausto como arma para
legitimar a opressão dos palestinos”.
Nesse ponto,
gostaria de pedir ao leitor que refletisse sobre a argumentação que se segue
tendo em mente as recentes palavras do presidente Luís Inácio Lula da Silva
quando comparou a ação de Israel com o holocausto e acusou Israel de cometer
genocídio, promovendo assim uma crise diplomática de grande dimensão.
Levando em conta
a força e a clareza do restante do ensaio que me propus a comentar, despeço-me
aqui deixando o próprio autor finalizar. Transcrevo, a seguir, as longas, mas
importantes citações do texto em pauta O novo antissemitismo, de Noah
Feldman:
“Durante a Guerra de Gaza, alguns
argumentaram que Israel, tendo sofrido o trauma do Holocausto, está agora
perpetrando um genocídio contra o povo palestino. Tal como outras críticas a
Israel, a acusação de genocídio não é inerentemente antissemita. No entanto, a
acusação de genocídio é especialmente propensa a desviar-se para o
antissemitismo porque o Holocausto é o exemplo arquetípico do crime de
genocídio. O genocídio foi reconhecido como crime pela comunidade internacional
após o Holocausto. Acusar Israel de genocídio pode funcionar, intencionalmente
ou não, como uma forma de apagar a memória do Holocausto e de transformar os
judeus de vítimas em opressores. [...]
Os esforços de Israel para se
defender contra o Hamas, mesmo que envolvam a morte de um número
desproporcional de civis, não transformam Israel num ator genocida comparável
aos nazis ou ao regime Hutu no Ruanda. A acusação de genocídio depende da
intenção. E Israel, como Estado, não está travando a Guerra de Gaza com a
intenção de destruir o povo palestino.
Os objetivos de guerra
declarados de Israel são responsabilizar o Hamas pelo ataque de 7 de Outubro a
Israel e recuperar os seus cidadãos que ainda estão mantidos em cativeiro.
Esses objetivos são legais em si mesmos.
Os meios que Israel utilizou estão
sujeitos a críticas legítimas por terem matado demasiados civis como danos
colaterais. Mas a campanha militar de Israel foi conduzida de acordo com a
interpretação de Israel das leis internacionais da guerra. Não existe uma
resposta única e definitiva de direito internacional à questão de saber até que
ponto os danos colaterais tornam um ataque desproporcional ao seu objectivo
militar concreto. A abordagem de Israel assemelha-se às campanhas travadas
pelos EUA e pelos seus parceiros de coligação no Iraque, no Afeganistão, e pela
coligação internacional na batalha contra o ISIS pelo controlo de Mossul. Mesmo
que o número de mortes de civis provocadas pelo ar pareça ser mais elevado, é
importante reconhecer que Israel também enfrenta quilômetros de túneis
intencionalmente ligados a instalações civis pelo Hamas.
Para ser claro: por uma questão de
valor humano, uma criança que morre às mãos de um assassino genocida não é
diferente daquela que morre como dano colateral num ataque legal. A criança é
igualmente inocente e a tristeza dos pais é igualmente profunda. No entanto, do
ponto de vista do direito internacional, a diferença é decisiva. Durante o
ataque do Hamas, os terroristas assassinaram intencionalmente crianças e
violaram mulheres. A sua carta apela à destruição do Estado judeu. No entanto,
a acusação de genocídio está senta feita contra Israel.
Estes fatos relevantes são
importantes para colocar a acusação de genocídio no contexto de potencial
antissemitismo. Nem a África do Sul nem outros estados apresentaram um caso de
genocídio contra a China pela sua conduta no Tibete ou em Xinjiang, ou contra a
Rússia pela sua invasão da Ucrânia. Há algo especificamente digno de nota em
lançar a acusação contra o Estado Judeu – algo entrelaçado com a nova narrativa
dos Judeus como opressores arquetípicos em vez de vítimas arquetípicas. Chame-o
de prestidigitação do genocídio: se os Judeus forem retratados como
genocidas – se Israel se tornar o próprio arquétipo de um Estado genocida –
então os Judeus serão muito menos propensos a serem concebidos como um povo
historicamente oprimido e empenhado em autodefesa.
A nova narrativa dos judeus como
opressores está, no final, demasiado próxima da tradição antissemita de apontar
os judeus como merecedores únicos de condenação e punição. Tal como aquelas
formas anteriores de antissemitismo, o novo tipo não tem a ver, em última
análise, com os judeus, mas com o impulso humano de apontar o dedo a alguém que
pode ser obrigado a carregar o peso dos nossos males sociais. A opressão é
real. O poder pode ser exercido sem justiça. Israel não deveria estar imune a
críticas quando age de forma errada. No entanto, a história horrível e a
resiliência invicta do antissemitismo significam que os modos de ataque
retórico a Israel e aos judeus devem ser sujeitos a um escrutínio cuidadoso”.
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