À SOMBRA DA CASTANHOLA EM FLOR
João Batista de Brito
Aconteceu dias atrás. Era em torno das cinco e quase não havia mais ninguém nas areias da praia. Como faço quase toda tarde, estava sentado debaixo da minha castanhola, na muradinha da calçada de Manaíra, fitando o mar.
Não muito longe de mim, tão protegida pela castanhola quanto eu, uma moça, acomodada em sua cadeirinha de praia, os pés na areia, lia. O que lia não sei, mas, na sacola pendente do encosto de sua cadeira estava impressa uma frase que me chamou a atenção: “É tempo de Proust”.
Notei que a moça era muito jovem (dezenove anos, talvez) e pensei: com certeza não tem a mínima noção de quem seja o escritor francês. Deve ter comprado a sacola em alguma loja cujo dono tampouco saberia dizer quem era Proust, e ela, por sua vez, jamais iria “em busca” disso, que seria “tempo perdido”.
Só para chatear, decidi que, quando a garota levantasse para ir embora, eu perguntaria se ela gostava de Proust. A resposta já imaginava qual seria: demorando um pouco para entender a pergunta, ela olharia a sacola, diria que tinha comprado numa boutique qualquer, e que nem prestara atenção aos dizeres. E iria embora, ligeiramente aborrecida com minha indagação inoportuna.
E assim fiz. A garota foi se levantando e eu: “Você gosta de Proust?”
E uau! Para o meu completo espanto, a garota abriu um sorriso feliz e foi dizendo e perguntando: “Muito! O senhor também?”
Respondi que sim, e ela, animada, veio sentar ao meu lado, e começou a botar para fora sua paixão por Proust. E não só isso: perguntou se eu podia esperar cinco minutos, que ia buscar em casa (morava logo ali) algumas edições que ela tinha de “Em busca do tempo perdido”.
Esperei. E lá vem ela com uma sacola maior, cheia de preciosidades, uma delas aquela edição rara do livro de Proust, a traduzida pelo poeta Mário Quintana.
De queixo caído, ouvi-a explicar o que eu mesmo não lembrava mais: que o título original do livro vinha dos primeiros versos do Soneto 30 de Shakespeare. E, com impecável pronúncia inglesa, recitou: “When to the sessions of sweet silent throught, I summon up remembrance of things past...”
Com o mesmo entusiasmo, passou a me mostrar uma coleção que estava fazendo das pinturas referidas no livro (que, como se sabe, são inumeráveis). Com a ajuda da internet, copiara todas aquelas pinturas, e já havia composto um belo álbum, que não resisti e pedi para fotografar.
E sua cultura proustiana não ficava por aí. Com a mesma sofreguidão, aproveitou e me mostrou, no celular, fotos das deliciosas “madeleines” que ela mesma costuma preparar, e servir aos amigos e parentes.
E eu, evidentemente, tomado de comoção com essa paixão de uma jovem do novo milênio, por um escritor falecido há mais de um século.
Mas pensa que sua cultura literária ficava só na França? Que nada. De repente, o papo passou a autores anglo-americanos, e ela veio me falar de seu interesse pelo “Moby Dick” de Melville. E passamos a conversar sobre o navegante Ismael, e sua aventura com o fanático Ahab, na busca enlouquecida da gigantesca baleia branca.
E de Balzac a Nabokov, passando por velhas cantigas medievais, falamos de vários tópicos, textos e/ou autores antigos ou novos que ela apreciava, uns mais, outros menos. E eu cada vez mais pasmo, sempre me indagando como é que essa garotinha em flor encontrava tempo para tanta leitura.
Mais tarde, chegaram os pais de Júlia (é esse o seu nome), um casal super simpático; fomos apresentados e prosseguimos conversando, agora sobre coisas mais práticas. No final das contas, ficamos amigos, e trocamos contatos virtuais, com a promessa de um dia nos juntarmos, numa ocasião especial, para degustar as “madeleines” de Júlia, com uma boa taça de vinho, que não precisaria ser o que Proust tomava.
Júlia é aluna na UFPB, na área de Letras Clássicas. Por enquanto, estuda Latim e Grego, mas só Deus sabe onde essa assombrosamente prodigiosa garotinha vai parar.
Em carona gentilmente oferecida pela família, voltei para casa com a leve mas benfazeja impressão de que, neste nosso país tão conturbado, nem tudo está perdido.
Pois é. Repousar debaixo da minha castanhola às vezes me rende frutos de elevada qualidade.
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