QUARTOS SEPARADOS - João Batista de Brito

QUARTOS SEPARADOS - João Batista de Brito
12/07/2024

QUARTOS SEPARADOS

João Batista de Brito


Estávamos no interior paraibano, lá pelos anos quarenta.

Era a época áurea do agave e do algodão e a família Rezende era proprietária de uma das maiores plantações do estado.

Ao pé da serra, a fazenda “Porta Aberta” contava com seis ou sete casinhas de moradores e a “casa grande”, a bela mansão que abrigava a família. Em que pese ao tamanho da mansão, seus residentes eram, na verdade, poucos. Se não contarmos os serviçais agregados, lá moravam apenas quatro pessoas: Seu Arnaldo, a esposa Dona Ifigênia, a filha, Marcela, e o genro, Juvêncio.

Marcela e Juvêncio se conheceram ali mesmo, na fazenda. Advindo de Campina Grande, recomendado por um primo de seu Arnaldo, veio com o propósito de assessorar o proprietário na condução dos negócios, e tudo deu tão certo que daí a pouco ele já era uma espécie de administrador da empresa.

Ao se avistarem pela primeira vez, Marcela e Juvêncio já se sentiram fisgados um pelo outro. A família aprovou o namoro, e logo vieram o noivado e o casamento. E, coisas daqueles tempos, o casal nem precisou de casa própria. Pra quê? A mansão tinha cômodos suficientes para abrigá-los, a eles e à provável e desejada prole. Que não tardou a vir.

A gravidez veio logo, mas, o parto teve complicações. Nos primeiros sintomas, a parteira local já sugeriu que fosse chamado imediatamente o médico da cidade. Não conto os detalhes, mas a parturiente quase não sobreviveu. Embora a criança tenha nascido sã, para a mãe foram três dias de semi-coma, e para a família, muito desespero. Depois de tudo passado, o médico convocou a família para anunciar o triste diagnóstico: infelizmente, a paciente não poderia mais engravidar. Um próximo parto seria fatal.

A primeira providência da família foi separar fisicamente o casal. O que foi feito com discrição, para não suscitar falatórios. Com a anuência do próprio casal, ficou decidido que, a partir dali, Marcela e Juvêncio dormiriam em quartos separados. E assim foi feito.

Nos primeiros anos, Marcela se entretinha com o papel de mãe, e Juvêncio, com o trabalho, ao qual se entregava com um empenho quase cego. Mas, vocês hão de convir, um jovem casal sem direito ao contato físico não é coisa fácil...

Depois de um certo tempo, Juvêncio passou a, um final de semana ou outro, ir a Campina Grande, alegando que ia visitar parentes, ou coisa do gênero. Na mansão dos Rezende, ninguém obstava, nem sequer comentava o assunto. Quem podia impedir um jovem homem de viver? De todo jeito, a incômoda conivência gerava um clima pesado de silêncios e subterfúgios.

Ressentida com aquelas “viagens” de fim de semana do marido, Marcela guardava seu choro para suas noites de insônia.

E assim a vida prosseguia na Fazenda “Porta Aberta”.

Foi numa noite chuvosa que a história teria tomado outro rumo. Se tomou, não sei.

Fechando um verão particularmente quente, as chuvas de março haviam chegado com força destruidora. Relâmpagos cortavam a escuridão e trovões ensurdecedores faziam coisas, bichos, plantas e pessoas tremerem. Trancado em seu quarto, Juvêncio lembrava saudoso o primeiro inverno que, depois de casados, desfrutaram, ele e a esposa no leito conjugal, de corpos entrelaçados, ao som de trovões e à luz de relâmpagos.

E agora isso: separados debaixo do mesmo teto. E ele se indagava o que haviam cometido na vida para merecer esse castigo. Com as prostitutas de Campina Grande era tudo mecânico e vazio, e cada vez mais, aqueles atos escusos o deixavam com nojo de si mesmo, ressentido e culpado. Era sua esposa que ele queria, era sua esposa que ele amava, e não suportava mais a ironia da situação: por que seu sêmen era inofensivo àquelas mulheres desconhecidas, enquanto que fazer amor com a mulher que amava seria matá-la?

Estava nessas indagações amargas quando, entre um estrondo de trovão e outro, ouviu baterem à porta. Pensou haver se enganado, mas as batidas, agora mais fortes, persistiam. Levantou-se, abriu a porta e lá estava, iluminada por um relâmpago, a sua esposa amada. Se olharam por um instante sem nada dizer ou fazer.

Foi aí que Marcela, os lábios trêmulos, balbuciou aquelas palavras que até um péssimo entendedor, entenderia. Sim, entre lágrimas, implorou:

“Eu quero morrer”.


FONTE: Facebook

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