NO PÁTIO DA IGREJA - João Batista de Brito

NO PÁTIO DA IGREJA - João Batista de Brito
03/08/2024

NO PÁTIO DA IGREJA

João Batista de Brito (Facebook)


Tudo teria acontecido lá pelos anos trinta do século XX, em algum ponto da zona rural do município de Santa Rita, a poucos quilômetros de João Pessoa. Na época, a terra e tudo mais em torno, incluindo o casarão e a igreja local, pertenciam a um poderoso fazendeiro da região.

Um dia a casa grande da fazenda recebe a visita de um jovem e simpático mascate italiano, vendendo suas mercadorias, roupas e joias. Embora os membros da casa grande fossem poucos - no caso, o fazendeiro, sua esposa, e uma única filha de dezoito anos de idade, - o mascate vira freguês da família, que passa a frequentar com certa regularidade, e depois, até com certa intimidade.

Acontece que uma afeição vai brotando entre o simpático mascate e a moça e, quando menos se espera, a afeição já tinha virado paixão. Ao tomar conhecimento, o velho rechaça o mascate e, peremptoriamente, o proíbe de, a partir daquela data, pisar em suas terras, e à filha, de pôr os pés fora de casa.

Um belo dia, cadê a moça? Tinha fugido com o mascate e – os empregados da fazenda testemunhavam – fora, de trouxa feita, encontrar o rapaz numa encruzilhada da estrada e agora já deviam estar a muitas léguas de distância, mato a dentro.

Sem hesitar, o velho dá suas ordens: três capangas bem armados partem no encalço do casal fujão, com missão inequívoca. De noite, no meio do mato, o rapaz é morto a tiros, na frente da moça, que, desfalecida de dor, é trazida para casa. Dizem que lá mesmo, no mato, o rapaz foi enterrado com suas bugigangas e tudo mais.

A partir daí, a moça se isola num aposento do casarão, sem querer ver a luz do dia. Quem lhe leva a subsistência é a mãe, uma comida em que ela nem toca, uma água que ela não bebe. Condoída, mas sem voz para mudar o rumo das coisas, a mãe acompanha o definhamento da filha, que não resiste por muito tempo à inanição e à tristeza e vem a falecer.

Não muito tempo após a morte da filha, a mulher começa a apresentar sintomas de debilidade psíquica: é mandada para um hospital em Recife onde, logo logo, termina falecendo também.

Sozinho no seu casarão, o fazendeiro sobrevive até a velhice, ninguém sabe como, pois, com o tempo, vai ficando cada vez mais recluso e invisível.

Ao falecer, encontram o testamento do velho: queria ser enterrado no pátio da Igreja, e que nesse pátio se desenhasse uma marca, indicando o local onde seu corpo estava sepultado: com dimensões do corpo humano, era a figura geométrica de um retângulo, desenhado com linhas em baixo relevo, isso bem na parte central do pátio, não muito distante da porta. Arrependido do que fizera com a filha, o velho fazendeiro queria pagar seus pecados: queria que os habitantes do povoado que fossem à missa passassem por cima de seu túmulo e o humilhassem com os pés.

A ironia é que, depois do corpo enterrado, a população do lugar, conhecedora da história, recusa-se a pisar no retângulo tumular e, todos sem exceção, desviando-o, entram e saem da igreja sem atender ao desejo do morto. Hoje a prática está esquecida, e, no entanto, para ser desviada ou pisada, a figura trágica do retângulo tumular continua lá.

O amigo me contou a história jura que é rigorosamente verídica. A mim, me chamou a atenção o fato de que contém todos os ingredientes de um belo argumento cinematográfico.

Imagino até como esse filme começaria. Seria assim: muito tempo após a morte do fazendeiro, um menino do lugarejo vai à missa com a mãe. Sobe os batentes do pátio e faz menção de pisar no tal retângulo. Notando, a mãe o puxa bruscamente pelo braço e o previne de que nunca fizesse isso. O menino pergunta por que, e ela responde que não é história pra criança saber.

Curioso, o menino volta da igreja com a proibição na cabeça. Cata a explicação entre amigos, e nada; até que se lembra da avó idosa e já meio caduca, com quem tem afinidades especiais. E claro, é a voz trêmula e frágil dessa avó generosa que vai narrar – a ele e a nós, espectadores, a ele com palavras, a nós com imagens – a história do retângulo tumular no pátio da igreja, do começo ao fim.

Encerrada a longa narração em flashback, o filme poderia muito bem terminar com um retorno ao presente com o menino se dirigindo, agora sozinho, ao pátio da igreja e, num gesto ambíguo entre malvadez e piedade, pisando o infausto retângulo. Fim.


FONTE: Facebook

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