NO PÁTIO DA IGREJA
João Batista de Brito (Facebook)
Tudo teria acontecido lá pelos anos trinta do século XX, em algum ponto da zona rural do município de Santa Rita, a poucos quilômetros de João Pessoa. Na época, a terra e tudo mais em torno, incluindo o casarão e a igreja local, pertenciam a um poderoso fazendeiro da região.
Um dia a casa grande da fazenda recebe a visita de um jovem e simpático mascate italiano, vendendo suas mercadorias, roupas e joias. Embora os membros da casa grande fossem poucos - no caso, o fazendeiro, sua esposa, e uma única filha de dezoito anos de idade, - o mascate vira freguês da família, que passa a frequentar com certa regularidade, e depois, até com certa intimidade.
Acontece que uma afeição vai brotando entre o simpático mascate e a moça e, quando menos se espera, a afeição já tinha virado paixão. Ao tomar conhecimento, o velho rechaça o mascate e, peremptoriamente, o proíbe de, a partir daquela data, pisar em suas terras, e à filha, de pôr os pés fora de casa.
Um belo dia, cadê a moça? Tinha fugido com o mascate e – os empregados da fazenda testemunhavam – fora, de trouxa feita, encontrar o rapaz numa encruzilhada da estrada e agora já deviam estar a muitas léguas de distância, mato a dentro.
Sem hesitar, o velho dá suas ordens: três capangas bem armados partem no encalço do casal fujão, com missão inequívoca. De noite, no meio do mato, o rapaz é morto a tiros, na frente da moça, que, desfalecida de dor, é trazida para casa. Dizem que lá mesmo, no mato, o rapaz foi enterrado com suas bugigangas e tudo mais.
A partir daí, a moça se isola num aposento do casarão, sem querer ver a luz do dia. Quem lhe leva a subsistência é a mãe, uma comida em que ela nem toca, uma água que ela não bebe. Condoída, mas sem voz para mudar o rumo das coisas, a mãe acompanha o definhamento da filha, que não resiste por muito tempo à inanição e à tristeza e vem a falecer.
Não muito tempo após a morte da filha, a mulher começa a apresentar sintomas de debilidade psíquica: é mandada para um hospital em Recife onde, logo logo, termina falecendo também.
Sozinho no seu casarão, o fazendeiro sobrevive até a velhice, ninguém sabe como, pois, com o tempo, vai ficando cada vez mais recluso e invisível.
Ao falecer, encontram o testamento do velho: queria ser enterrado no pátio da Igreja, e que nesse pátio se desenhasse uma marca, indicando o local onde seu corpo estava sepultado: com dimensões do corpo humano, era a figura geométrica de um retângulo, desenhado com linhas em baixo relevo, isso bem na parte central do pátio, não muito distante da porta. Arrependido do que fizera com a filha, o velho fazendeiro queria pagar seus pecados: queria que os habitantes do povoado que fossem à missa passassem por cima de seu túmulo e o humilhassem com os pés.
A ironia é que, depois do corpo enterrado, a população do lugar, conhecedora da história, recusa-se a pisar no retângulo tumular e, todos sem exceção, desviando-o, entram e saem da igreja sem atender ao desejo do morto. Hoje a prática está esquecida, e, no entanto, para ser desviada ou pisada, a figura trágica do retângulo tumular continua lá.
O amigo me contou a história jura que é rigorosamente verídica. A mim, me chamou a atenção o fato de que contém todos os ingredientes de um belo argumento cinematográfico.
Imagino até como esse filme começaria. Seria assim: muito tempo após a morte do fazendeiro, um menino do lugarejo vai à missa com a mãe. Sobe os batentes do pátio e faz menção de pisar no tal retângulo. Notando, a mãe o puxa bruscamente pelo braço e o previne de que nunca fizesse isso. O menino pergunta por que, e ela responde que não é história pra criança saber.
Curioso, o menino volta da igreja com a proibição na cabeça. Cata a explicação entre amigos, e nada; até que se lembra da avó idosa e já meio caduca, com quem tem afinidades especiais. E claro, é a voz trêmula e frágil dessa avó generosa que vai narrar – a ele e a nós, espectadores, a ele com palavras, a nós com imagens – a história do retângulo tumular no pátio da igreja, do começo ao fim.
Encerrada a longa narração em flashback, o filme poderia muito bem terminar com um retorno ao presente com o menino se dirigindo, agora sozinho, ao pátio da igreja e, num gesto ambíguo entre malvadez e piedade, pisando o infausto retângulo. Fim.
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